Cultura

Sophia, livre como o mar

A 6 de novembro de 1919, nascia, na cidade do Porto, Sophia de Mello Breyner Andresen. A ligação ao mar nasceu com ela, quase como herança do bisavô, Jan Andresen, e a poesia existiu na sua vida ainda antes de saber que podia escrevê-la.

Figura incontornável da cultura portuguesa, a poetisa foi, desde sempre, uma das personalidades mais acarinhadas pelos portugueses. Desde que, em 1944, publicou o primeiro livro, Poesia, uma edição financiada pelo pai, Sophia soube que a sua vida se faria com poesia. No dia em que se comemora o centenário do seu nascimento, recordamos a vida e obra da Menina do Mar.

A Menina do Mar e dos Poemas

Em 1840, Jan Andresen, bisavô de Sophia, deixou a ilha de Föhr, uma ilha piscatória então parte da Dinamarca, rumo à cidade do Porto. Na época, o destino de muitos dos que deixavam aquela ilha era os Estados Unidos. Mas Andresen apaixonou-se pela cidade Invicta e decidiu ficar. A sua ligação ao mar, resultado da vida passada numa ilha, era tal que pediu, em testamento, que quando morresse fosse erguida, na sua sepultura, uma estátua tão alta que tivesse vista para o mar.

Talvez Sophia tenha herdado a sua ligação ao mar do bisavô. É certo que, em toda a sua obra, há vários poemas e contos sobre o mar ou com o mar em grande destaque. Mas já antes, o mar a impressionava e fazia parte dos seus verões, nas férias que passava na Praia da Granja.

Se o mar veio da parte dos Andresen, a poesia ter-lhe-á chegado pelo avô Thomaz de Mello Breyner, que lhe apresentou os primeiros poemas, de Camões. No entanto, Sophia encantou-se primeiro com a declamação. O primeiro poema que se lembra de declamar foi Nau Catrineta. Com 12 anos, começou também ela a escrever os seus poemas.

Nascida numa família aristocrática, muitas das suas vivências de criança acabariam por se notar na sua obra, principalmente nos contos infantis, como em Saga, que lembra a história do bisavô Andresen.

Antes do 25 de abril

Sophia frequentou o curso de Filologia Clássica, na Universidade de Lisboa, mas nunca o concluiu. A capital havia, no entanto, de se tornar a sua casa, mais concretamente a Travessa das Mónicas, onde viveu desde que se casou até à sua morte.

O casamento com Francisco Sousa Tavares, em 1946, aproximou-a mais da política, mas nunca a afastou da poesia, que acabou por se revelar a melhor forma de lutar pela liberdade – mas não era a única. Foi sempre uma mulher atenta ao mundo que a rodeava. Era, por isso, comum vê-la, principalmente a partir da década de 1950, demonstrar desagrado com o regime de Salazar.

Usava a sua poesia como forma de expressar a sua liberdade e apoiava as causas em que acreditava. Um desses casos foi a Comissão Nacional de Apoio aos Presos Políticos, mas não se ficou por aí. Textos e poemas em alguns folhetos tinham muitas vezes a sua autoria. Em vários momentos, a PIDE, Polícia Internacional e de Defesa do Estado, interrogou Sophia para tentar obter informações. No entanto, o estatuto cultural e as ligações familiares de Sophia impediam a PIDE de tentar mais do que os interrogatórios.

A Poesia está na rua

O 25 de abril de 1974 chegou como uma primavera, uma oportunidade de começar de novo. Para Sophia, trouxe uma nova forma de envolvimento político. Em 1975, foi eleita deputada da Assembleia Constituinte, pelo círculo do Porto, nas listas do Partido Socialista. No entanto, a experiência foi curta: a política não era o seu lugar, não lhe pertencia. Escrever era “a melhor participação política”, como disse ao Jornal de Letras em 1982.

Apesar de ter deixado a Assembleia, Sophia mantinha-se sempre atenta ao que ia acontecendo em Portugal, principalmente numa altura tão delicada da nossa história. A amizade com Mário Soares e Maria Barroso também haveria de se prolongar.

Em 1984 foi a vez do marido, Francisco Sousa Tavares, ter uma participação mais ativa na política, ao aceitar o cargo de ministro da Qualidade de Vida. Veio a demitir-se no ano seguinte, entrando em processo de separação de Sophia logo a seguir. Dois anos depois, em 1987, Sophia é convidada por Mário Soares para o cargo de Chanceler das Ordens Nacionais, cargo que desempenha durante três anos.

Se a vida pública parecia correr-lhe bem, a vida privada não seguia o mesmo rumo. O filho mais novo, Xavier, sofre um traumatismo craniano num jogo de futebol entre amigos e fica paralisado do lado esquerdo. Mais tarde, Sophia e Sousa Tavares entram num longo e moroso processo de divórcio, só finalizado em 1988. Falar da vida privada não era, no entanto, algo que gostasse de fazer: era a poesia que contava a sua história.

Faltou o Nobel, ficou a Poesia

Sophia de Mello Breyner Andresen morreu em Lisboa, a 2 de julho de 2004, aos 84 anos. Para muitos, faltou algo importante na sua carreira: o Prémio Nobel da Literatura. Ela, no entanto, não se impressionava com prémios. Era comum ouvi-la dizer que pensar muito em prémios “é um mau pensamento“.

A neta Rita Sousa Tavares não deixou esquecer esta característica da avó e, em 2014, na cerimónia de transladação de Sophia para o Panteão Nacional proferiu uma frase que certamente resume a poetisa portuguesa: “Se lhe dessem a escolher entre um prémio literário e um último mergulho no mar, preferia o mergulho no mar“.

Quinze anos após a sua morte e cem anos após o seu nascimento, a sua obra continua atual e imponente. Talvez lhe tenha faltado, de facto, o Nobel, mas ficou a sua escrita. Se tivéssemos de resumir a vida de Sophia, poderíamos, talvez, tomar emprestadas as palavras de Isabel Nery, da biografia que escreveu: “Sophia foi apenas Sophia. Com o tudo e tanto que isso significa.“

 

Artigo original: Bertrand Livreiros