Cultura

Os livros que fazem a história da emigração

A busca de uma vida melhor tem levado milhares de portugueses a emigrar ao longo dos últimos quatro séculos. O Brasil e as Américas foram os destinos mais procurados até metade do século XX, quando a Europa passou a dominar. Mathias de Sousa foi o primeiro emigrante português que desembarcou nos Estados Unidos em 1634, mas foram muitos os escritores que se inspiraram nas suas experiências longínquas para escrever obras que documentam e revelam as difíceis situações que viveram.

A Selva

Não faltam testemunhos, ao longo dos séculos, que tenham descrito com vivências muito realistas a emigração dos portugueses e estabelecido uma cronologia muito documentada das suas partidas para todos os países das Américas, da Europa e da Ásia. Ter um litoral voltado para o oceano Atlântico é como uma porta aberta ao convite para partir, repetindo um cenário como o da Expansão Marítima em que milhares embarcaram à procura de fortuna. Deixar a terra onde nasceram e ir ganhar a vida noutro destino que não Portugal, ou passar a fronteira com o nosso vizinho ibérico e entrar pelo continente europeu em busca de outra vida foi sempre a solução. Não será por acaso que se tornou um lugar-comum dizer que não há um local em todo o planeta onde nunca tenha estado, esteja ou venha a estar um português.

Os escritores têm sido das melhores testemunhas para registar esses caminhos percorridos fora do retângulo nacional nos últimos séculos, pois a distância molda novas identidades e também cria novas perspetivas para olhar o mundo em romances reveladores dessas verdadeiras odisseias. Entre eles, ninguém melhor do que o escritor Ferreira de Castro (1898–1974) para se conhecer a história da emigração portuguesa, tal foi o cruzamento de culturas que viveu ainda muito jovem e que, principalmente, no seu romance A Selva, foi capaz de a descrever, de uma forma tão inocente como impiedosa, devido à juventude com que deixou a povoação de Ossela (Oliveira de Azeméis) e a realidade violenta com que se confrontou. O que o fez partir não difere da razão de outros emigrantes como ele: ficou órfão de pai aos oito anos e, quatro anos depois decide emigrar para ajudar a sustentar a família. Embarca no vapor Jerôme rumo a Belém do Pará (Brasil) para trabalhar numa propriedade de um tio na floresta amazónica, na extração da borracha e em condições inimagináveis para os portugueses de hoje. Esses anos, no entanto, foram inspiradores do ponto de vista literário e o relato dessa terrível experiência transformou-se na coluna-mestra de A Selva, um dos romances de maior sucesso no século passado em Portugal.

Não faltaram opiniões sobre o relato desta odisseia de Ferreira de Castro, como a do escritor austríaco Stefan Zweig, que se exilou no Brasil devido à perseguição aos judeus na Alemanha: "Quem quiser conhecer todos os pormenores do horror deste ciclo da borracha leia o admirável romance de Ferreira de Castro"; ou a de Jorge Amado, que referiu "A Selva como um clássico, um dos poucos livros definitivos"; bem como a de Albert Camus, que sublinhava "o estilo com que dá conta de uma das regiões do mundo mais inóspitas para o homem".

O que conta Ferreira de Castro em A Selva? A história da sua juventude, emigrado em paragens desconhecidas e em muito diferentes para quem nascera em Portugal, de como sobreviveu à Amazónia selvagem e a um trabalho quase escravo, que nunca mais esqueceu e que com muita dificuldade passou para o romance, como confessa: "durante muitos anos tive medo de a reviver literariamente, com medo de reabrir as feridas". Seria, no entanto, um romance que se pode condensar num desabafo que faz: "Não houve um dia em que não pensasse evadir-me para a cidade e libertar-me da selva." O romance centra-se na personagem Alberto, um jovem monárquico português que se exila em Belém do Pará, descrevendo as rudes condições do trabalho no seringal Paraíso e as enormes dificuldades a que os imigrantes estão sujeitos.

O romance de Ferreira de Castro, A Selva, é um dos exemplos documentais de um dos grandes ciclos da emigração portuguesa, que tem como destino o Brasil: em 1891, foram 29 630 os que emigraram para esse destino, quase duplicando na década de 1920, com o impressionante número de 233 655. A emigração também tem outros destinos com elevados números nesta mesma década, como para os Estados Unidos com 39 738, a Argentina com 19 563 e, pelo mundo fora, 72 239. Olhando aos dados estatísticos, o Brasil é o eldorado para os portugueses durante todo o século XIX e até à primeira metade do século XX.

Com o fim da escravatura no Brasil em 1888, a necessidade de mão-de-obra faz com que acolha, além de portugueses, milhares de imigrantes espanhóis, italianos, alemães e uma enorme colónia japonesa. O destino da emigração portuguesa mudará muito da década de 1960, quando o destino passa a ser preferencialmente os países do continente europeu. Aquele que mais seduz é a França, que chegou a ter mais de um milhão de portugueses, na maioria clandestinos, mas também a Alemanha, Luxemburgo, Suíça, Bélgica, Holanda e Grã-Bretanha. Além dos portugueses do continente, também os Açores e a Madeira tiveram enormes fluxos de imigração. Os primeiros, desde o século XIX, instalaram-se em cidades pesqueiras da Costa Leste dos Estados Unidos; os segundos, já no século XX, preferiram a África do Sul e Venezuela.

A Criação do Mundo

Tal como Ferreira de Castro, nem todos os emigrantes portugueses ficaram nos países que os receberam. Também o escritor Miguel Torga teve um percurso parecido e serviu-se da sua experiência brasileira em jovem para o segundo dos seis dias do seu livro A Criação do Mundo, documentando a emigração portuguesa de uma forma muito crua. Nessa autobiografia romanceada, conta como uma criança que deixa Trás-os-Montes em 1920 é recebida pelo tio que vive no Rio de Janeiro e tem uma fazenda de café em Minas Gerais. O que faz é uma descrição do confronto de um adolescente de 13 anos com um mundo novo, em que mais não é do que, diz, "uma máquina de trabalho", sem que o deixassem estudar e sem vislumbrar um futuro por via da educação. A narrativa que faz das suas desventuras brasileiras torna-se num testemunho obrigatório da emigração portuguesa em busca de uma vida melhor do que a possível no seu país, sendo que abrange a análise de um panorama muito largo da sociedade brasileira, seja quanto à cultura, através de referências à obra de Machado de Assis e outros autores, bem como numa radiografia da herança colonial portuguesa, onde uma sociedade estratificada em classes muito definidas e com uma ampla segregação racial proíbe a ascensão social e dificulta os sonhos de qualquer emigrante.

Com os Holandeses e Tempo Contado

Várias décadas depois, o escritor J. Rentes de Carvalho (1930) irá recuperar a sua vida emigrante e também inspirar-se nas impressões da terra dos pais, a pobre localidade de Estevais (Mogadouro), como trama para vários romances. O autor não viveu as agruras da emigração em jovem, tendo deixado Portugal por razões políticas, já com um curso universitário, o que lhe permitiu emprego como jornalista no Rio de Janeiro, em Nova Iorque e Paris. Nunca regressou definitivamente ao seu país, tendo optado, em 1956, por viver na cidade de Amesterdão para o resto da vida, onde frequentou um mestrado e apresentou a tese O povo na obra de Raul Brandão, bem como um livro, Com os Holandeses, sobre o país e o povo que o aceitou, e que se transformou num grande sucesso literário nesse país. As memórias da emigração também estão sempre muito presentes na obra de J. Rentes de Carvalho, como no diário Tempo Contado, em que compara os lugares por onde trabalhou e também relata um regresso a Lisboa oferecido em 1994 pela embaixada portuguesa em Haia por ocasião de Lisboa — Capital Europeia de Cultura. Revisitar Lisboa tem um pretexto: "escrever um ensaio sobre Eça de Queiroz, um escritor que exerceu uma influência determinante na minha formação". O diário não se fica por esse objetivo, nem se faz só de regressos ao passado, pelo contrário, replica a habitual peregrinação que os emigrantes fazem ao seu país após vivências em terras distantes: vai ao cemitério e recorda o pai, lembra-se da mãe, faz compras no talho da vila, repara em como o telefone é antigo e a "campainha parece um sino de igreja", convive com outros deslocados num jantar com "cinco ou seis nacionalidades presentes", passeia de madrugada pela terra e ouve o "cantar dos galos e o cão que ladra". Lá mais para o fim do livro questiona o presente: "A minha vida gira em torno de quê?" E responde: "Não faço ideia. Talvez seja apenas uma sequência de hábitos que ficaram no lugar dos objetivos que por vezes desdenhei e outras vezes esqueço de ter".

A Cidade e as Serras

O pretexto que trouxe J. Rentes de Carvalho de volta ao país foi a escrita de um texto sobre Eça de Queiroz (1825–1900), um outro português que escolheu viver quase toda a vida longe de Portugal. Não foi um emigrante por azar, mas por escolha, trabalhou como diplomata em Cuba e em várias localidades da Inglaterra, reproduzindo nos seus romances as impressões sobre os portugueses e também as dos que viviam no estrangeiro, como a saudade da personagem Jacinto no romance A Cidade e as Serras da terra natal perante o cosmopolitismo de Paris. Em muitas das suas obras, Eça expõe a vida dos que viveram fora do país como ele próprio, destacando, neste romance, a ausência da relação com a pátria.

Caderno de Memórias Coloniais

Não são só os portugueses nascidos no continente que registam em livro a emigração e uma vida muitas vezes destruída pelos acontecimentos políticos. Um dos melhores exemplos é o Caderno de Memórias Coloniais, de Isabela Figueiredo, autora nascida em Moçambique (1963), no qual retrata a vida dos colonos portugueses que foram para os territórios de África no século XX e que, com a revolução do 25 de Abril de 1974, tiveram de abandonar os lugares onde se tinham estabelecido. É uma recolha de memórias que faz um exame muito sensível, descritivo dos hábitos que rodeiam os emigrantes e num tom tão sentimental como de perda. Começa assim, o seu Caderno: "Manuel deixou o seu coração em África". Descreve o processo de colonização que levou milhares de portugueses para outro continente: «No marcelismo, os navios acostavam cheios, todas as semanas. Os colonos chegavam misturados com as tropas e ficavam por ali». Diferencia os hábitos de um lugar e daqueles de onde se partia: «Na metrópole, não se conhecia a catana»; as diferenças raciais: «havia o filho do vizinho preto»; a diversidade geográfica: «Saindo da cidade, os lugares podiam tornar-se selvagens e inabitados por quilómetros e quilómetros», ou a força da natureza: «Era África, inflamante, sensual e livre. Era vermelha. Cheirava a terra molhada, mexida, queimada».

O Evangelho segundo Jesus Cristo

Entre os que migraram a contragosto, está o único português Prémio Nobel da Literatura: José Saramago (1922–2010). O escritor rumou a Lanzarote num autoexílio após a censura oficial a O Evangelho segundo Jesus Cristo, romance que, ao contrário da primeira parte da sua obra, não se inscreve em Portugal. Enquanto vive numa paisagem em muito inóspita, como a da ilha para onde foi viver, não deixa de registar outros horizontes da sua vida em Portugal: «É certo que a Azinhaga me deu o que Lisboa não me poderia ter dado: aqueles campos, os olivais, a lezíria, o rio Almonda, o Tejo, os porcos que o meu avô Jerónimo guardava, os passeios de barco, as manhãs à pesca, os banhos». Saramago descreve essas recordações de um país em que nunca mais morou até à sua morte, a não ser em breves regressos em várias entradas dos cinco Cadernos de Lanzarote, bem como em As Pequenas Memórias, confirmando a tese de que os portugueses nunca deixam por completo a terra onde nasceram. É também um bom exemplo de como a literatura produzida por quem se afasta do país nunca deixa de contar com as histórias de quem partiu e que estas são sempre um elemento de ligação ao passado e uma valorização da língua portuguesa, bem como um retrato da dualidade entre o sentimento do sentimento de se ser estrangeiro, seja qual for o destino da emigração.

Saramago não está sozinho entre os protagonistas nacionais que emigram por vontade própria, como é o caso do ex-presidente da República Manuel Teixeira Gomes (1860–1941), que abandonou o país na sequência de uma crise política em 1925 e se exilou voluntariamente na Argélia, onde se dedicou à escrita de uma obra literária na qual recuperou, também como historiador, as suas memórias, impressões de viagem e romances, repleta de evocação das suas vivências anteriores e do destino que escolheu para viver. Não foi a única figura de destaque que partiu para longe, pois, em contexto profissional, houve muitas mais que sentiram essa necessidade, como o médico Ribeiro Sanches (1699–1783), que exerceu medicina militar durante 15 anos em São Petersburgo e cuja fama o levou a ser clínico da czarina Ana Ivanovna, além de membro de várias academias de Ciências. Tendo-se correspondido com os principais intelectuais europeus da sua época, deixou um vasto espólio investigatório, ensaístico e memorialista que retrataram a sua época e os lugares por onde andou.

A literatura tem sido uma das melhores fórmulas para documentar toda uma história de emigração e não são apenas os escritores portugueses que a registam. Também os tradutores o fazem, como é o caso de Margaret Jull Costa, uma inglesa de ascendência lusófona que tem tido um papel importante na divulgação de obras nacionais, como Os Maias, de Eça de Queiroz, e várias de Saramago, entre outras. A ascendência lusófona está também presente internacionalmente em muitas figuras das artes, como o realizador Sam Mendes, ou os escritores Daniel Silva, com família açoriana, e John dos Passos, com família madeirense, o grande compositor de marchas americanas John Philip Sousa, ou grandes difusores da cultura portuguesa, como o professor açoriano Onésimo Teotónio de Almeida na Universidade Brown, que tem escrito livros em que espelha as tradições do seu país e ilhas de origem.

A marca da emigração portuguesa nos Estados Unidos está ainda muito patente em várias comunidades estado-unidenses, afinal segundo o último censo, cerca de 1,5 milhão de estado-unidenses são de origem portuguesa. Mathias de Sousa terá sido o primeiro emigrante português a chegar aos Estados Unidos , tendo desembarcado em Maryland em 1634. De 1870 para a frente, o número de portugueses que emigraram para os Estados Unidos foi enorme, muitos dos Açores, e eram muito procurados como tripulantes dos baleeiros estado-unidenses. São também vastas as histórias dos portugueses que emigraram para o Havai, como mão de obra para as plantações de açúcar. Ao contrário da maioria das comunidades lusófonas, os emigrantes que foram para o Havai não se esforçaram por manter a sua identidade, como ainda hoje se verifica noutros locais dos Estados Unidos , onde os antigos costumes de origem são muito celebrados. É o caso de festas religiosas da Madeira em New Bedford, que se realizam desde 1915 e reúnem milhares de participantes, onde são servidos pratos como a tradicional espetada, favas, chouriço, bacalhau e vinho da Madeira. As Caraíbas também foram um destino para muitos imigrantes madeirenses, com destaque para Manoel Fernandes que fundou uma das mais importantes destilarias de rum há mais de um século.+

Entre os muitos testemunhos deixados por escritores sobre a emigração portuguesa, não se pode esquecer os livros da poetisa Olga Gonçalves (1929-2004), que publicou um primeiro romance, A Floresta de Bremerhaven, e um estudo sobre os portugueses que emigraram para a Europa, Este Verão o Emigrante Là-bas, ambos considerados como a "recuperação da voz de um povo" devido à sua constante preocupação em documentar a emigração portuguesa, no seu caso, com especial enfoque na emigração feminina.

Artigo original: Bertrand Livreiros