Cultura

Entrevista a Richard Zimler

Nas últimas três décadas, o norte-americano naturalizado português, Richard Zimler, tem sido um dos autores mais prolíficos no panorama literário nacional. Entre romances, livros de contos e livros infantis, o autor de 66 anos é reconhecido pelo seu trabalho de investigação com que constrói cada uma das suas obras. Acaba de publicar o seu 14º romance, intitulado A Aldeia das Almas Desaparecidas, onde cruza ficção e realidade histórica para abordar o passado judaico e as marcas da Inquisição em Portugal.

Num romance dividido em dois volumes, conta-se a história de Isaaque Zarco, um rapaz de nove anos, que leva uma existência tranquila na pacata aldeia de Castelo Rodrigo, no ano de 1671. O desaparecimento misterioso de uma família amiga e o assassinato de um vizinho, vêm colocar em causa os pilares que haviam sustentado o seu mundo. A avó Flor, velha parteira e curandeira castelhana, revela-lhe então o que ninguém se atrevera a dizer: que ele e a sua família são afinal judeus secretos — e, por conseguinte, sujeitos a denúncias e aprisionamentos. É desta forma que Richard Zimler dá aso a uma narrativa feita de mistério, mas também de factos históricos e nomes reais que fazem deste livro um registo notável sobre o passado religioso em Portugal, mas que é também uma reflexão sobre o papel da fé na atualidade.

Os seus romances são conhecidos por um assinalável trabalho de pesquisa exaustivo. Como surge a ideia de escrever este livro, ambientado na aldeia de Castelo Rodrigo e povoações adjacentes, e marcado por acontecimentos reais ocorridos no tempo da Inquisição?

Por volta de 2010 ou 2011, passei uns dias em Castelo Rodrigo e fiquei encantado com a aldeia. O granito escuro usado para construir as pequenas casas é particularmente bonito e dá a Castelo Rodrigo uma atmosfera de harmonia e graça. Felizmente, não há novos edifícios. Além disso, a aldeia fica no topo de uma colina, de modo que as vistas dos campos e montanhas circundantes são impressionantes. A aldeia parecia um lugar mágico — atemporal, de certo modo — e pensei: «tenho de escrever um romance que se passa aqui!» Mas não tenho nenhuma estratégia para a minha carreira e somente alguns anos mais tarde é que tive a ideia de uma obra que começasse em Castelo Rodrigo. Ao pesquisar a história da região, tive a ideia de escrever sobre o efeito da Inquisição num jovem — Isaaque Zarco — e a sua família. E o efeito da intolerância religiosa no país inteiro. Infelizmente, muitos aldeões foram detidos e encarcerados durante as últimas décadas do século XVII — e muitos morreram na prisão ou em autos de fé. Ocorreu-me que contar o efeito do Santo Ofício sobre um menino de nove anos seria emocionante e original. E daria ao livro um ar de mistério, de uma presença sinistra a penetrar no seu mundo tranquilo. Tendo apenas nove anos, Isaaque não entenderia bem o propósito da Inquisição. E o desaparecimento dos seus amigos e vizinhos pareceria um grande mistério. Quando ele finalmente descobre a razão pelo qual desapareceram — e descobre que foram denunciados ao Santo Ofício por vizinhos — isso parece-lhe quase inconcebível, pois, para ele, a aldeia sempre foi um lugar tranquilo.

No centro da sua narrativa está a personagem de Isaaque e a sua família, cujas fundações e laços começam a ruir em virtude dos desaparecimentos misteriosos que ocorrem. De que forma é que lhe surge este protagonista e como é que foi o processo de escrita e encadeamento com os diversos factos reais?

Os meus personagens geralmente surgem da minha pesquisa. Não posso prever quem eles serão. Como venho a conhecê-los melhor à medida que estou a escrever a narrativa, tenho sempre que voltar aos capítulos iniciais e fazer muitas modificações. No caso de Isaaque, tornou-se um jovem muito determinado e curioso — um menino que se recusa a aceitar as mentiras que lhe contam os seus pais e vizinhos. Estes adultos mentem sobre os desaparecimentos de pessoas na aldeia — e a razão pelo qual um amigo da família foi assassinado — porque não querem revelar que o Isaaque nasceu numa família de judeus secretos. Era tradição em Portugal, entre aqueles que praticavam o judaísmo em segredo, de contar aos filhos o significado de seus rituais especiais apenas quando atingiram a adolescência — quando, em princípio, podiam guardar um segredo perigoso. Porque se revelassem qualquer coisa sobre as suas práticas religiosas — sobre os rituais do sábado judaico, por exemplo — toda a família poderia ser presa, mandada para a prisão, torturada e até queimada num auto de fé.  O primeiro personagem que criei foi o Isaaque, depois dele veio a avó Flor, que é de Salamanca. É uma curandeira e uma verdadeira força da natureza. E o vínculo emocional e espiritual entre ela e Isaaque é inquebrável. Frequentemente, os personagens simplesmente surgem. O meu trabalho é entender quem são e qual é a relação deles com os outros personagens. E o que eles tencionam acrescentar ao livro.

A obra levou-o a um trabalho de campo e reconhecimento? Como foi essa descoberta do Norte de Portugal e dos seus segredos?

Passei três dias em Castelo Rodrigo durante a fase de pesquisa. Andei horas pelas ruas e também pelas ruas de todas as outras aldeias da zona, como por exemplo, Escalhão e Escarigo. Tirei muitas fotos. Nos meus passeios, não tenho nenhum objetivo específico a não ser orientar-me — notar as vistas que qualquer pessoa que passasse por lá no século XVII veria. Acho isso extremamente útil. E adoro visitar lugares que são novos para mim. Há sempre algo interessante para encontrar: vestígios da época romana, por exemplo, ou azulejos do século XVII numa igreja. É emocionante descobrir evidências de como as pessoas viviam nos séculos passados. Para saber mais sobre o efeito da Inquisição em todas essas aldeias, passei semanas a pesquisar no arquivo digital da Torre do Tombo. Precisava de saber os nomes dos aldeões que foram presos pelo Santo Ofício, as datas de prisão, quem eram seus pais e todas as outras informações que pudesse conseguir. Saber os seus nomes e um pouco sobre quem eram tornava-os mais reais para mim. Quando sabemos o nome de uma pessoa que está presa por praticar o judaísmo e qual era a sua profissão e os nomes dos seus filhos, é possível formar uma identificação pessoal. É por isso que penso que cada aluno em Portugal devia saber o nome de uma pessoa da sua aldeia, vila ou cidade que foi presa pela Inquisição e fazer pesquisa para saber pormenores sobre a sua vida. Quando descobrimos que alguém foi queimado vivo num auto de fé, apenas por praticar a sua fé, isso torna o seu sofrimento pessoal. E faz com que a Inquisição pareça terrivelmente real. E as emoções que sentimos dão-nos o desejo de lutar contra as injustiças no nosso mundo atual. Pelo menos, é isso que acontece comigo.

Em que medida é que as sua origens judaicas e interesse pelo misticismo contribuíram para as temáticas de que fala nesta nova obra, nomeadamente a intolerância religiosa?

Há muito tempo que pesquiso o misticismo judaico, por isso estou bem preparado para escrever sobre um personagem como Samuel, o amado tutor de Isaaque, que é um boticário e cabalista. Consigo entendê-lo e ver o mundo na perspetiva dele. E também entendo porque luta com tanta coragem contra o Santo Ofício. A Inquisição visava os judeus secretos, é claro, mas também visava as chamadas bruxas e pessoas de origem islâmica e qualquer pessoa com pensamentos ou ações consideradas ‘heréticas’. Para mim, todas as vítimas têm o mesmo valor. Todos tiveram as suas vidas destruídas pela intolerância e crueldade. Por isso, tento contar histórias de todos aqueles que foram perseguidos. A esse respeito, há no livro um personagem islâmico que foge do Santo Ofício e se refugia com alguns amigos de Isaaque. Acho que as cenas com ele são particularmente interessantes e comoventes.

Já o disse, noutras ocasiões, como se indigna pelo facto de a história judaica em Portugal parecer ter sido apagada dos livros. Podemos olhar para este romance também como uma forma de reparação histórica desse facto?

Como mencionei numa de minhas respostas anteriores, acho que é muito importante para as pessoas conseguirem uma identificação emocional com indivíduos que foram vitimizadas pela intolerância religiosa ou étnica nos séculos passados. Essa é uma das razões pelas quais a Anne Frank e o Primo Levi são tão importantes. Quem lê seus livros cria uma ligação emocional profunda com eles e, por meio disso, passa a entender mais sobre como o Holocausto arruinou a vida daqueles que foram enviados para os campos de concentração. Acho que quem ler este romance formará uma relação igualmente próxima com Isaaque Zarco, a sua avó Flor e o seu tutor Samuel. Através deles, os leitores entenderão melhor como a Inquisição funcionou, quais eram seus objetivos e por que ela causou tantos danos em Portugal, ao longo de quase 300 anos. Por isso, espero que se comprometam ainda mais a combater a intolerância em Portugal e no mundo inteiro, apoiando as mulheres iranianas e a sua luta pela igualdade, por exemplo.

Ainda no campo da religião, este romance acaba por nos alertar para o facto da intolerância e perseguição ser um mal da humanidade, ainda hoje bem presente. É possível, a partir da sua leitura, fazermos uma reflexão sobre o papel que a religião organizada mantém nas sociedades atuais?

Espero que sim. Afinal, as religiões organizadas costumam criar grandes injustiças e sofrimentos. Voltando ao Irão, veja toda a miséria criada pelo seu governo e, em particular, pela sua polícia moral. Naquele país, todos estão sob o domínio de clérigos brutais que desprezam mulheres e minorias. É uma ditadura religiosa da pior espécie possível. Sou a favor de uma separação completa entre religião e governo. Não apenas no Irão, mas em todos os países. Infelizmente, em muitos países, os líderes religiosos e os seus seguidores têm muita influência sobre a política. Invariavelmente é isso que leva à opressão de mulheres e de minorias. Outro exemplo seria Israel. Pequenos grupos religiosos e os seus líderes de mente muito fechada são muito influentes na definição das políticas governamentais. E a influência das religiões organizadas nos EUA, particularmente das igrejas evangélicas, é terrível.

Descreve-o como o seu mais completo romance, escrito em dois volumes. Como escritor sente que alcança com esta nova obra um outro patamar em termos de escrita?

O importante para mim é sentir-me satisfeito com o livro. E estou. Acho que consegui dar vida a alguns personagens maravilhosos — Isaaque, Flor, Samuel, Helena, Navalha e muitos outros. E penso que a história é extremamente comovente e emocionante. Com isso, quero dizer que queria dar tempo ao Isaaque para contar sua história; recusei apressá-lo. Tornou-se por isso num projeto extremamente ambicioso e de narrativa longa (que estamos a publicar em dois volumes). Não é fácil manter um universo paralelo na nossa mente durante mais de quatro anos, por isso orgulho-me por ter mantido a energia e determinação num período tão longo. Claro que a minha satisfação com o romance não significa necessariamente que os leitores também vão gostar ou que vão identificar-se com os personagens e achar a história cativante, mas já recebi mais de cem mensagens de leitores a dizer que adoraram a narrativa e que estão a aguardar ansiosamente o segundo volume. Isso deixa-me mais convicto de que escrevi uma obra bastante especial.

Artigo original: Bertrand Livreiros